Mina me sabia tão afoito com suas maravilhas, ela podia muito me armadilhar, ela podia muito esticar o pézinho e me deixar gordo e escravo
mas Mina me ignorava, eu lembro
grupos de pessoas, carnes de minha carne, vozes de minha voz, cruzavam a rua; eles eram belos e nem sabiam, se sentiam tão importantes, suas ferocidades, seus afagos,
eu os via os de braços que levantariam mundos, se lhes quisessem, se decidissem assim
eu invejava a força que poderia sair dali, eu bem sabia
eu queria gritar-lhes nas orelhas sim! sim! eles tão rijos e mudos, só sabiam trocar as pernas por aí e gastar-se suas cores tão lindinhas que eu sabia poderiam desenhar-me tudo que sempre quisera, mas eles só faziam fingi-lo, tão preocupados com suas vidinhas
miguel nem era destes, ele só era vazio, era dos mais relegados aos cantos
um dia na rua, eu cruzei com aquele, eu saberia depois, se chamava miguel
mais tarde fui contar a bruno, bruno, que diabos, há algos aís, há latências! as coisas à noite, talvez quando olharmos tortos e com as pálpebras semi-cerradas, quando usar as chaves certas e recitarmos a senha mais bonita de todas com arremates dourados e muito açúcar, aí então talvez os cabelos das pessoas voem, talvez elas virem de cabeça para baixo à noite em suas camas sonhando com tanta força que doa no travesseiro, que a cama rache de peso
bruno concordava superior, ele que vinha me falando disso tantas vezes, não sei se bruno era profeta ou mentiroso.
a maior virtude de bruno era esta: quando ele falava do mundo, o mundo era Mundo, imundo lindo, as coisas aconteciam. bruno fazia as coisas serem mais bonitas do que verdade, era gostoso conversar com bruno
se eu queria ficar fechado num apartamento bruno me faria fantasiar um mundo bonito, e se eu só me alimentasse do que bruno dizia, aí então seria feliz e gordo, havia tanta vida nas palavras de bruno
indassim eu saía do apartamento, e ia olhar o mundo tão incrível, e ele sempre havia faltado no dia em que eu ia, sempre estava em manutenção ou desligado, a burocracia, o mundo só abriria das 15 às 19 horas, e eu nem tinha relógio para medi-lo, eu sempre chegava atrasado, nunca acontecia nada
bruno só gritava e se dizia feliz, e ia em tantas festas e eram Festas com F e me pareciam lindas, mas quando eu ia junto eram tão bobas e nos fechávamos em nós e nada acontecia
meu plano era simples: eu iria me enfurnar debaixo de muitos e muitos lençóis e cobertores, longe das perdas de tempo em planos e planos que todos passavam repetindo, eu iria me erguer muros contra tudo; meu quarto, minha cidade, minha vida isolada: eu não queria mais sair eu queria era escrever a vida inteira, só passaria lendo e escrevendo, lendo não tanto, ouvindo música clássica, vendo imagens de quadros bonitos; me alimentar da mais alta arte enfurnado no topo da minha torre longe de tudo e todos, eu não queria mais viver;
indassim eu para mim escrever era a vida! eu tinha que achar a vida onde estava a vida? e a vida nunca estava, eu procurava e comia vida o dia inteiro mas não havia vida. minhas mãos só largavam vazio, vazio por todos os cantos, era palpável; mas eu saía na rua e as pessoas me cruzavam ocas, todas reclamando e fazendo planos, nunca olhavam para seus pés e pisavam nos bueiros e nas poças de lama suja, eu as via todas olhando para cima, olhando para os prédios e as pessoas distantes; sempre que eu via alguém olhar para cima eu achava que era um suicídio, que havia alguém indo se jogar; mas nunca era nada, era sempre só uma recusa em nojo, um desprezo pelos pés e pela camisa suja de sorvete e chocolate, as pessoas só andavam nas ruas olhando para os lados e para cima e nunca para baixo;
bruno era mais forte do que eu, ele agüentava
eu quase não.
falo muito de bruno porque bruno morava comigo, ou eu morava com ele, não havia bem nós, nunca houve.
eu conheci uma assim, coincidênciando; quase parecia estar escrito mas não estava, e eu parei e olhei várias vezes e ficava exclamando "nossa, porque as chances, porque isso quase me soa tão planejado" quase me parecia que eu era personagem e que ali estava histórias que valiam a pena - mas sempre assim, a tal era sempre nada, era muito mais outra coisa: quando me caíam por cima
bruno gostava das festas mas o apartamento era pequeno, e tinha sim suas folhas pelo chão - porque bruno só escrevia à mão com sua letra cursiva tão conservadorinha, ele sim era ilegível de arcaico, se recheava de ares estrangeiros, ares passados: bruno falava tanto do mundo das idéias que lhe morava na cabeça universal, eu o ouvia atento e ele me convencia da vida, eu sabia.
ia à praia porque o sol nos deixa tão gostosos, os corpos quentes, a melhor coisa era o sol invasivo nas pálpebras fechadas, o calor profundo que agarrava no dia todo; eu ia à praia e saía o resto do dia praiano, mas não ia tanto assim, só às vezes.
bruno gostava das festas e falava de muitas, eu nem sabia quantas ele ia, não ouvia bem sua porta batendo. bruno fazia o que queria, quem era eu para me importar? ele saía atrás de festas e eu sabia, que ele estava atrás de cotidiano, ele queria se lambuzar d'um cotidiano mais falado, mais novo, eu sei.
os dias passavam os dias passam sempre, passando como passava as roupas dos dois, eu nunca passei bem.
o cotidiano era tão palpável que me coçava, eu quase lhe sentia o gosto, não era mesmo embolorado, era mais um gosto de verdadeiro mesmo. o que não me tivesse gosto de cotidiano soava falso, soava tão imaginário que quase me negava.
eu saía depois da aula e ficava perambulando, antes de ir para a biblioteca, os metidos ficavam me olhando
eu morava com bruno num apartamentinho muito simpático,
éramos
eu acharia lindo dizer que tinha uma máquina de escrever, que bruno às vezes saía para comprar papel para mim, às vezes eu saía para perambular na rua, a tinta nunca acabava e os quartos eram uma bagunça, com tanto vento marítimo entrando - porque precisava respirar os ares úmidos de noite, e ficava gripado com freqüência - mas as folhas voavam e empenavam a esmo, às vezes os pés sujos de areia ou de chão-mesmo pisavam numa ou duas e era ah! preciso reescrevê-las então. mas seria bucólico, e o mundo hoje tão lento, tão enferrujados os desgastes entre os conhecidos: eu tinha era um pequeno ordinateur (para não largar os eufemismos bonitistas) um lap-top que me pousava no colo, e eu passava na cama ou no sofá, todos os dias saía algo, mas nem se espalhava pela sala nem pelo banheiro - que as impressões hoje não saem limpas, não saem fáceis, tão difícil imprimir - eu só teria espalhar as idéias em projetores nas paredes, mas já sonho demais.
eu morava com bruno já há alguns meses, bruno fazia direito em algum lugar e odiava, mas ia. eu também ia nos meus ódios e todos, não tinha tanta fé nos que não iam, era lento demais pousar.
não longe dali, bruno sentado no banco, na calçada, ele estava só e nem era bruno: estava escondido; mas ouvia também o som estranho, aqueles instrumentos, aquelas coisas... que será, ele estava frágil e poucos sabiam quem era.
essas horas em que o mundo cheirava mal, e bruno sentia-se escarro, quando então era nessas horas que tudo acontecia, mal sabíamos; só depois.
bruno estava só e nem era bruno, mas tão distraído pelo som, cruzou a rua, levantou-se, andou dos passos lá longe, e lá se fora aquele outro que ele fora por uns instantes de escondido.
no som, bruno era bruno, e havia rédeas que segurar em si.
ontem! eu digo ontem, ontem é, ontem será, como amo ontem! vou tatuar ontem na minha barriga, no meu peito! se você soubesse nossa, como ontem é lindo, você viria comigo para lá, ai! que amo ontem, hoje passo o dia amando ontem, você não, Suzana?
Carlinhos, seu bobo, que bobo você, seu bobo. mas é mesmo, você tem razão, a maior Razão de todas (com muitas maiúsculas). estou cansada de andar, vamos ficar por aqui mesmo? vamos voltar pr'areia? eu vou voltar, ali conheços, olha quem táli, sabes? vamos ali, voltar mesmo.
(mas nós sempre ficamos aqui não)(mas mais longe há tantos gatinhos! hihi)(mas há ali mais frente um som, estão ouvindo? há mais para frente algo acontecendo (acho que é um show) vamos lá ver?)(mas esses aí eu já conheço tanto! vemos eles todo dia! masmás-másmas)
ah vocês são tão jovens! ih, haha, depois a gente vê, depois, vamos deixar para depois. agora eu vou ficar por aqui mesmo, estou pondo os pés na areia, estou apressando na areia quente, estou esticando a canga, estou deitando, nem vi vocês, nem sei vocês.
eles vão com Suzana, eles nem discordam mesmo, eles preguiçosos.
meu nome é Suzana, com várias maiúsculas, e eu sou.
Suzana bonita, andava (e todos sempre andam). ela andava na rua, solta, ela que se sabia bela, os homens olhavam-Ela, solta, caminheando. Suzana sempre bonita, sempre, se você cruzasse com ela na rua, você olhava bem! sabe do que eu estou falando? que doce, que... nossa. você nem precisava ser homem, porque Suzana se sabia: seu corpo se sabia, o corpo tão corpo.
era domingo e era ressaca. seria gostoso falar dos sábados, em que os mundos mudam, mundam, ai como são bons os sábados... mas isso se faria num sábado. hoje é domingo (hoje sempre é domingo) dia de lembrar ai! como foi bom ontem, não é isso que vocês dizem?
Suzana domingo, cansadeada, com duas amigas mais um: eram os quatro quatro nomes, que já vem, já virão (eles andavam na calçada da praia e era sol e estavam todos preguiças saindo d'areia que lhes grudava por tudos).
não precisa, não, não, é tão calmo, é às noites, é preciso, é preciso, navegar é preciso viver não, já diziam, já diziam, vai ser sempre - você é tão sempre - você é tão sempre! ai que eu te amo, eu te quero sempre, sempre você
esses cuspes, essas mágoas que me saem, eu nem evito. eu ne-m e-v-ito. e ponto, já disse, já disse! que eu passo o dia in-t-eiro querendo fazer isso, eu queria tanto fazer isso, mas não dá! eu digo não dá. ninguém vem, ninguém sabe como - nem eu!
eu queria ser sempre... você sabe? eu tô falando sozinho. oi. miguel.
é preciso, sabia? as gentes não sabem, nem eu. eu nem digo isso! ah isso tudo só me soa, só me transparece nos cabelos e nas bochechas. quando você cruza comigo, na rua, você lê isso em eu ser lento, em eu ser eu, você sabe. isso nem dá pra esconder.
é preciso todos os dias. todos. não há desculpas, para ressaca, para dores, para fingir que você é maior do que a sua vida NÃO! você achas que ficas aí, s'importanteando, s'orgulhando. é preciso todos os dias, eu disse.
miguel voava às noites, todas, e não se sabia bem disso. miguel era voante, e poucos notavam.
na verdade, eram bem nítidas essas levitações noturnas, quando ele quase soltava das vidas e dos dias, ele quase se mandava pelos ventos que lhe chamavam, com suspiros em seus ouvidos tão sugestionáveizinhos de dorminte, de voante. as pessoas nunca notam issos.
o cabelo lhe saía de controle fácil, era claro. quando saía da cama, nas manhãs, seus cabelos estavam outros, eram outras cores de outros cabelos porque eles haviam todos voado antes. eram matos novos lhe nascendo, eram algas, cabelos-algas porque ele voava tanto em suas noites que quase caía no mar, tomar uns banhos compridos de mar, já que de noite é tão bom, que nem respirar precisamos.
mas não só o cabelo. você cruzava na rua com miguel apressado, em seus afazeres diurnos, com o cabelo revolto já mais lento, você olhava os cabelos e falava "estão acalmando, estão desacelerando, estão quase dormindo". mas não só o cabelo.
as bochechas, sim! as bochechas de miguel: quando você cruzava com miguel na rua, e ele te olhava com olhos tortos (que olhar que miguel não tinha), as bochechas estavam inchadinhas, estavam mais róseas do que costume (mesmo que você nem tivesse o costume de ver miguel) elas eram tão um-pouco-mais rechonchudas do que você esperaria naquele rosto de passante. porque elas estavam cheias de líquido, que miguel bochechara à noite em algum canto, que ficara-lhe cheio e ele precisava esvaziar. miguel às vezes cuspia, às vezes babava muito cochilando nas ocasiões.
falei do olhar dele, mas o olhar é tão miguel que só fica assim, era mais um olhear de miguel.
lençóis cobrindo-lhe a cabeça, inteira, puxados com muito esforço de todas as partes da cama em que estiveram enfiados, eram lençóis então livres, espalhando-se calmos como um véu sobre seus olhos, e as mãos apertavam-lhe, como se fossem lençóis tão brancos de alma, que lhe envolvessem as peles bonitas como segundas peles, como terceiras
ele deitado em seu mar de lençóis, ele segurava-se, antes de cair no teto, que o teto lhe puxava com força, ele sabia
suas mãos eram punhos fechados chorando, pois que espremiam mesmo o ar, mesmo seus próprios dedos entalados na garganta, ele era punhos e garganta, ele não podia cair no teto
suas mãos presas, lhe ancoravam ante os ventos que lhe vinham, e balançavam as cortinas lindas, cortinas brancas, que lhe lambiam as faces gélidas, cortinas horríveis de almas, de brancos, ondulavam ao vento lhe acariciando os seus lençóis, e seus lençóis queriam quase alçarem-se nos sopros bonitos, levarem-se todos por aí
mas ele inda doía sozinho, porque se pelas mãos ele era cama e lençóis, os seus pés voavam, chutavam, lutavam, pés eles mesmos levantando tudo e acenando às distâncias, pés de ar, pés de longe que não güentavam em si
ele se chamará miguel